O mercado de lácteos vem passado por constante transformações, uma vez que os consumidores estão cada vez mais exigentes em relação aos produtos que consomem. Uma forte tendência que se mantém atual é a demanda por produtos com teor reduzido ou ausência de gordura. Neste contexto, as indústrias de laticínios procuram estratégias para desenvolver produtos com características nutricionais, mas também sensoriais que atendam às necessidades dos consumidores.
A Transglutaminase (TGase) é uma enzima amplamente conhecida por ser capaz de formar ligações isopeptídicas inter e intramoleculares em várias proteínas alimentares, por meio da ligação cruzada dos resíduos de aminoácidos da glutamina ligada à proteína (doador ácil) e lisina (receptor acilo), formando polímeros de alta massa molar (ROMEIH e WALKER, 2017).
Essa enzima pode ser obtida de fontes diversas, sendo a de origem microbiana (Streptoverticillium mobaraense e Streptomyces mobaraense) a mais empregada, principalmente pela sua capacidade de aprimorar propriedades tecnológicas e nutricionais dos alimentos (FATIMA e KHARE, 2018).
O uso de enzimas é permitido pela legislação brasileira para aplicação em alimentos em geral e não há especificação sobre os limites de adição, sendo utilizada em quantidades suficientes para atingir o efeito desejado (BRASIL, 2014). No entanto, não há uma especificação de quais produtos o uso não é autorizado, cabendo assim, uma consulta a legislação de cada alimento. No caso de lácteos, a cada tipo e variedade dos derivados. Além disso, a Food and Drug Administration (FDA) reconhece a TGase como GRAS, o que garante sua segurança para aplicação em produtos alimentares.
A TGase pode trazer uma vantagem competitiva para a indústria de laticínios no desenvolvimento produtos inovadores e/ou funcionais com sabor satisfatório e propriedades de textura aprimoradas. O leite é considerado um bom substrato para atuação da TGase em função da κ-caseína apresentar boa reatividade, principalmente por estar localizada na superfície da micela de caseína, seguida da β-caseína situada no interior da estrutura (ROMEIH e WALKER, 2017). As caseínas não possuem uma estrutura terciária bem definida e a ausência de pontes de dissulfeto facilitam o acesso da enzima (ÖZERENK, 2006; AJINOMOTO, 2018).
De modo geral, as principais vantagens de se utilizar a TGase são que esta enzima é considerada Ca+ independente, evitando sua complexação com as proteínas; é altamente específica em relação ao substrato; atua em uma ampla faixa de temperatura e melhora a estabilidade térmica, podendo ser utilizada em diferentes processos e produtos, promovendo melhoria das propriedades de emulsificação, gelificação, viscosidade e capacidade de retenção de água (FATIMA e KHARE, 2018; MIWA, 2020). Variações nas condições de reação, como concentração de enzima, temperatura, pH, disponibilidade de substrato e especificidade permitem vários graus de modificação de proteína.
A seguir serão apresentadas as principais aplicações da TGase em derivados do leite, que em linhas gerais promove muitos benefícios com seu uso.
Leites Fermentados
As principais aplicações encontradas para a TGase são em iogurtes e produtos fermentados em geral, visando melhorias na qualidade sensorial, na textura e nas características físico-químicas de tais produtos (BATISTA et al., 2021; GHARIBZAHEDI e CHRONAKIS, 2018; RAHILA et al., 2016). A TGase promove um aumento da viscosidade e da força do gel, melhor capacidade de retenção de água e uma redução da sinérese nesses produtos (GHARIBZAHEDI e CHRONAKIS, 2018).
Em um estudo realizado por GARCÍA-GÓMEZ et al. (2019) foi observado que a adição de 1U de enzima/g de proteína proporcionou o desenvolvimento de um iogurte desnatado com características próximas a de um produto integral comercial. Assim, a TGase pode ser utilizada na elaboração de iogurtes sem adição de gordura substituindo os estabilizantes.
A TGase induz a formação de ligações intermoleculares entre as proteínas, formando uma estrutura mais homogênea e estável à medida que o processo de acidificação ocorre, melhorando as características de qualidade do gel formado (RAHILA et al., 2016; GHARIBZAHEDI e CHRONAKIS, 2018).
Queijos
Na produção de queijos, a modificação enzimática utilizando a TGase está associada ao aumento no rendimento, melhoria das características de textura e sensoriais, e o aumento da umidade em alguns tipos de queijo (ROMEIH; WALKER, 2017), tais como queijos frescos, edam, muçarela, queijos processados e gouda.
Um aumento de 19% no rendimento foi obtido em queijo tratado com TGase, que foi atribuído à maior retenção de água durante a etapa de corte da coalhada, além do produto ter apresentado uma rede proteica mais forte, maior dureza e valor nutricional (CADAVID et al., 2020).
No geral, três vias são propostas para a produção de queijo com TGase: (1) adição da TGase ao leite antes da pasteurização que, consequentemente, desativa a enzima e, em seguida, adição de cultura starter e/ou coalho ao leite; (2) coagulação do leite e adição de TGase após o corte da coalhada; (3) adição de TGase simultaneamente com coalho ao leite (ROMEIH e WALKER, 2017).
Sorvete
Os estudos envolvendo o uso da TGase em os gelados comestíveis envolvem principalmente produtos com teor reduzido de gordura. Características de qualidade como overrun, processos de desestabilização, taxa de derretimento e propriedades de textura podem ser aperfeiçoadas com a adição dessa enzima (GHARIBZAHEDI et al., 2018).
Melhorias nas propriedades físicas e sensoriais (cor e textura) de sorvete com baixo teor de gordura foram observadas com a adição de proteínas do soro de leite tratadas com TGase (4U/g) (DANESH et al., 2017).
Leite em pó e concentrados proteicos
O leite em pó e os concentrados proteicos são produtos versáteis que podem ser consumidos e utilizados como ingrediente em diferentes produtos, assim a modificação enzimática do leite via TGase pode ser indiretamente utilizada (CHEN et al., 2018).
Outra vantagem do uso de ingredientes já modificados pela ação da TGase é a redução do tempo de processamento, uma vez que o período de incubação e a etapa de inativação da enzima tornam-se dispensáveis (ROMEIH; WALKER, 2017). Leite em pó desnatado obtido após o tratamento com a TGase apresentou um aumento no tamanho de partícula e maior fluidez, melhorando as características reológicas do leite em pó (ROMEIH et al., 2021).
Amostras de leite em pó desnatado foram produzidas a partir de concentrados de leite tratados com TGase (0, 0,020%, 0,030% e 0,035%) e foram utilizadas como ingrediente no processamento de iogurtes (ER et al., 2019). Os autores afirmam que a reticulação via TGase nos concentrados de leite possibilitou uma melhoria na textura, formação de gel e capacidade de retenção de água dos iogurtes.
Conclusão
A TGase é uma enzima que atrai o interesse da indústria de laticínios por promover redução de custos, com a utilização de menos estabilizantes e gordura já que ela pode agir como um substituto a esses constituintes, pelo seu potencial de melhorar propriedades tecno-funcionais e sensoriais dos produtos lácteos.
A TGase pode ser aplicada em uma variedade de produtos para atender às exigências dos consumidores, principalmente sensoriais e nutricionais. A TGase estimula o desenvolvimento do setor com a inserção de coadjuvantes de tecnologia de baixo custo e que resultam em aplicações eficientes.
É possível perceber como o universo dos laticínios é vasto e complexo, envolvendo a conexão de diversos conhecimentos e ciências para o fornecimento de produtos saudáveis e saborosos para os consumidores!
Referências
Ajinomoto, 2018. Ajinomoto Foods Europe SAS.
https://www.transglutaminase.com/what-is-transglutaminase-tg.
BATISTA, et al. Artificial neural networks modeling of non-fat yogurt texture properties: effect of process conditions and food composition. Food and Bioproducts Processing, v. 126, p. 164-174, 2021. DOI: 10.1016/j.fbp.2021.01.002.
BRASIL. Resolução RDC n. 53, de 07 de outubro de 2014. Dispõe sobre a lista de enzimas, aditivos alimentares e veículos autorizados em preparações enzimáticas para uso na produção de alimentos em geral.” Órgão emissor: ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
CADAVID, et al. Improving quark-type cheese yield and quality by treating semi-skimmed cow milk with microbial transglutaminase. Lwt, v. 131, n. June, p. 109756, 2020. DOI: 10.1016/j.lwt.2020.109756.
CHEN, et al. Influence of transglutaminase-induced modification of milk protein concentrate (MPC) on yoghurt texture. International Dairy Journal, v. 78, p. 65–72, 2018. DOI: 10.1016/j.idairyj.2017.10.001.
DANESH, et al. Short communication: Effect of whey protein addition and transglutaminase treatment on the physical and sensory properties of reduced-fat ice cream. Journal of Dairy Science, v. 100, n. 7, p. 5206–5211, 2017. DOI: 10.3168/jds.2016-12537.
ER, et al. Production of skim milk powder by spray-drying from transglutaminase treated milk concentrates: Effects on physicochemical, powder flow, thermal and microstructural characteristics. International Dairy Journal, v. 99, 2019. DOI: 10.1016/j.idairyj.2019.104544.
FATIMA e KHARE. Current insight and futuristic vistas of microbial transglutaminase in nutraceutical industry. Microbiological Research., v. 215, n. May, p. 7–14, 2018. DOI: 10.1016/j.micres.2018.06.001.
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GHARIBZAHEDI e CHRONAKIS. Crosslinking of milk proteins by microbial transglutaminase: Utilization in functional yogurt products. Food Chemistry, v. 245, n. October 2017, p. 620–632, 2018. DOI: 10.1016/j.foodchem.2017.10.138.
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RAHILA, et al. Enzymatic Modification of Milk Proteins for the Preparation of Low Fat Dahi. Journal of Food Processing and Preservation, v. 40, n. 5, p. 1038–1046, 2016. DOI: 10.1111/jfpp.12684.
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ROMEIH e WALKER, Gavin. Recent advances on microbial transglutaminase and dairy application. Trends in Food Science and Technology, v. 62, p. 133–140, 2017. DOI: 10.1016/j.tifs.2017.02.015.
GHARIBZAHEDI, et al, Shahin. Recent advances in the application of microbial transglutaminase crosslinking in cheese and ice cream products: A review. International Journal of Biological Macromolecules, v. 107, p. 2364–2374, 2018. DOI: 10.1016/j.ijbiomac.2017.10.115.
Fonte: MilkPoint
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