Historicamente, a evolução da sociedade humana foi marcada por processos baseados em uma estrutura patriarcal, sendo delegadas às mulheres algumas atividades específicas, muitas vezes domésticas.
Durante um certo tempo da história, “fazer manteiga” foi considerada uma atividade feminina, porém o que muitos não sabem é que com essa prática, as mulheres foram responsáveis por criar e movimentar o comércio mundial da manteiga até os anos 1800!
Como surgiu a manteiga?
Assim como a maioria dos demais derivados do leite, acredita-se que a manteiga teve sua origem no período Neolítico, quando nossos ancestrais começaram a domesticar os animais ruminantes. Os detalhes exatos obviamente são imprecisos.
Mas o cenário mais provável é que o leite tenha sido ordenhado e colocado em recipientes feitos de pele de animal costurada, os quais eram armazenados à sombra durante o dia. (Essa etapa permitia a fermentação do produto e a separação do creme, que naquela época não era conhecida).
Ao anoitecer, a temperatura caia, resfriando o produto, o que garantia a cristalização parcial dos glóbulos de gordura do leite (essencial para a produção da manteiga). Por sua vez, o homem ao sair para pastorar no dia seguinte, atrelava a bolsa contendo leite em um animal.
Portanto, esse leite fermentado era agitado (permitindo à gordura do leite as condições ideais para a bateção). Pronto! Ao final de sua jornada, aquele homem havia encontrado um novo produto: flocos de manteiga mergulhados em um líquido opaco (leitelho). E assim foi “descoberta” a manteiga!
Há ainda uma versão menos romantizada que pressupõe que a invenção do queijo precede à da manteiga. Nesse caso, acredita-se que o soro resultante da fabricação de queijos feitos a partir de leite de ovelha teria sido acidentalmente agitado, levando à formação de pedaços de manteiga em meio ao soro (a manteiga feita utilizando o soro resultante da produção de queijos é uma prática adotada até hoje e é uma excelente alternativa para o aproveitamento deste coproduto).
Independentemente da teoria adotada sobre o surgimento da manteiga, um conhecimento é tido como consenso, as primeiras foram produzidas a partir do leite de ovelhas, cabras e iaques. Os bovinos começaram a ser domesticados muito mais tarde e, inicialmente, eram utilizados apenas para trabalho e não para obtenção de leite.
A manteiga foi rapidamente aceita pelas pessoas e teve um grande avanço entre as tribos e comunidades da época. Entretanto, na região do Mediterrâneo, o azeite de oliva era (e ainda é) a principal fonte de gordura. Naquela região, as condições geográficas não eram favoráveis para pastagens, portanto, para a criação de animais leiteiros.
Dessa forma, o leite era totalmente convertido em queijo, sendo apenas uma pequena quantidade de manteiga produzida a partir da gordura do soro resultante da produção dos queijos. É importante ressaltar também que a manteiga tinha uma má reputação, uma vez que era associada aos “bárbaros do norte” por gregos e romanos.
Sabe-se que a Civilização Romana exerceu grande influência no direito, arte, arquitetura, religião, dentre outros no mundo ocidental, mas, talvez, um aspecto que tenha passado despercebido é que as práticas de produção de alimentos no início da Idade Média também seguiram os resquícios da ocupação romana.
Isso significa que quase todo o leite era utilizado para a fabricação de queijos (cerca de 50 kg de queijo para cada 2 kg de manteiga), fazendo com que a manteiga fosse considerada um artigo de luxo e ficasse restrita à nobreza da época.
O mercado da manteiga foi construído pelas mulheres!
Essa história começa na Idade Média! Mas, precisamos saber: como era a divisão dos trabalhos entre homens e mulheres? Quais eram as crenças da população naquela época? Há também que se considerar que não existia refrigeração e o leite é um produto altamente perecível.
As tarefas eram divididas basicamente com os homens ficando especialmente responsáveis pelas tarefas “mais externas” à casa, como plantar e cuidar dos animais e as mulheres com as tarefas “mais internas”, como cozinhar, limpar, lavar, e ajudar com os animais.
Fazer produtos lácteos era considerado uma extensão das tarefas domésticas. De acordo com o volume do século XVI do livro “Book of Husbandry” (Livro de Manejo, em tradução direta), de Sir Anthony Fitzherbert, eram tarefas da esposa: peneirar todos os tipos de milho, preparar o malte, lavar, preparar o feno, vender milho, manteiga, queijo, leite, ovos, frangos, porcos e outros animais, comprar todo o necessário para a manutenção da casa e prestar contas ao marido.
O mesmo tratado advertia que a esposa deveria fazer manteiga e queijo sempre que pudesse. Baseando-se nesse tratado dá para imaginar que a rotina diária da mulher da Idade Média começava cedo!
Além disso, é importante considerar que naquela época o leite era associado a vários rituais de fertilidade, nascimento e lactação. Portanto, por vários séculos ao redor do mundo, existiram tabus sobre os homens manipularem o leite, reforçando a responsabilidade feminina nessa prática.
Ainda dentro da misticidade e folclore envolvendo o leite e a fabricação da manteiga, era comum na Idade Média, quando uma fabricação de manteiga falhava, uma mulher ser acusada de bruxaria. Nesse sentido, essa falha aparece nas transcrições de julgamentos de bruxas da Europa como uma prova que a mulher tinha poderes mágicos sobre a bateção da manteiga de outra.
Levando em consideração que produzir manteiga era considerada uma tarefa doméstica, suas características, como, por exemplo, a consistência e o sabor, assim como a qualidade do produto variavam de uma produtora para a outra.
Cada manteiga era produzida de animais diferentes (às vezes, até de espécies diferentes), os quais tinham alimentação distintas, sendo que a quantidade de sal utilizada também variava e o próprio equipamento utilizado na fabricação podia mudar entre as mulheres.
Além disso, para diferenciar os seus produtos no mercado, as mulheres, naquela época, já conheciam as ferramentas de marketing: elas utilizavam vários moldes, às vezes com alto-relevo, decoração e embalagens, como meio para diferenciação dos seus produtos.
E, como toda tarefa doméstica da época, era um ensinamento passado de mãe para filha. Cada mulher tinha a sua sabedoria adquirida com a prática e bom-senso, pois naquela época não havia sido desenvolvida a ciência do leite.
A economia em torno da manteiga cresce fortemente nos séculos XVI e XVII, assim, a Europa torna-se referência na sua produção. Nesse mesmo período, grandes mudanças também começaram a acontecer. As cidades cresceram exponencialmente, havendo grande migração populacional do campo para os grandes centros.
Essa mudança trouxe grande impacto social, já que as pessoas morando em cidades não produziam mais seus próprios alimentos e dependiam da produção dos alimentos daqueles que continuaram na zona rural.
Nesse início da economia urbana, houve crescimento do mercado da manteiga e, consequentemente, de empregos relacionados à produção deste lácteo. Quem sabia produzir manteiga? As mulheres! Assim, as mulheres solteiras ou viúvas puderam ser empregadas em uma área crescente de grandes fazendas ligadas à produção de lácteos.
O emprego em uma fábrica de laticínios da época era considerado uma posição de respeito, um degrau acima dos disponíveis para mulheres (a maioria empregos domésticos), especialmente porque a venda de laticínios era mais lucrativa do que qualquer outro produto agrícola. Assim, uma mulher que produzisse uma boa manteiga (isto também valia para queijos) sempre encontrava trabalho!
Como a transformação de um líquido branco, por exemplo, o leite, em produtos sólidos tão ricos e saborosos como a manteiga e o queijo parecia algo misterioso para os homens da época, a arte de produzir lácteos garantia às mulheres o emprego e respeito dos homens do comércio, o que era raro na ocasião. As mulheres dominavam a área de lácteos guiadas pela intuição!
E, foi assim que movimentaram e sustentaram o mercado da manteiga na Europa e fizeram da Irlanda a grande exportadora de manteiga do século XVIII. O mercado irlandês, assim como a sua competitividade mundial (que exportava para diversos países como Suíça, Dinamarca, Holanda, Portugal, Espanha, e suas colônias) não teria existido se não fosse o trabalho manual das mulheres irlandesas.
Elas com as suas habilidades em produzir grandes quantidades diárias na forma de tubos, bolas ou tijolos com estampas e marcas diferentes, construíram uma indústria artesanal de proporções globais.
É imprescindível lembrar que, antes das grandes batedeiras industriais, o equipamento simples que as mulheres empunhavam para fazer a manteiga também era o que impulsionava o comércio de laticínios mundial.
A Introdução da Ciência do Leite: o impacto inicial para as mulheres
O domínio das mulheres nos laticínios durou até o início dos anos 1800, quando foi introduzida a Ciência do Leite, que era dominada pelos homens, os quais tinha acesso aos estudos naquele momento. Em uma época de muita transformação, em pouco tempo, cientistas, empresários, engenheiros tomaram o papel de reformadores do trabalho das mulheres que trabalhavam em laticínios.
Então, uma nova rotina de trabalho para produção de manteiga surgiu nos laticínios, inicialmente gerenciada por homens, porém ainda operada pelas mulheres. Para tanto, muitas delas precisaram frequentar aulas de treinamento em uma escola de laticínios administrada por homens.
Não foi uma transição fácil para muitas mulheres, cujos métodos tradicionais foram bruscamente substituídos por novas práticas. Há registros históricos de comentários depreciativos sobre os métodos ultrapassados das mulheres e como elas atrapalhavam o avanço das técnicas para a fabricação da manteiga.
Em resumo, as mulheres foram consideradas um obstáculo para o progresso relacionado à fabricação da manteiga. Isto ficou evidenciado em um relatório da Comissão Nacional de Educação da Irlanda de 1885 que afirmava: “as mulheres confinadas ao pequeno círculo da casa, sem tempo para ler ou oportunidade de ver métodos aprimorados e, frequentemente, sem conhecimento das várias qualidades de manteiga exigidas pelo mercado, dificilmente poderiam contribuir para a melhoria na fabricação da manteiga.”
O novo momento da Ciência do Leite naquela época trouxe grandes revoluções para a fabricação de manteiga. Por exemplo, em 1878, o engenheiro e inventor sueco Gustaf de Laval criou a centrífuga separadora de creme.
A invenção foi considerada uma grande revolução porque modificou a forma com que o leite era manuseado no mundo, permitindo a obtenção do creme doce. Como consequência, alterou o sabor da manteiga, tornando-a mais suave ao paladar.
Além disso, a presença de centrífugas nas fábricas aumentou a obtenção do volume de creme por hora e, com isso, a quantidade a ser processada na forma de manteiga. Para dar vazão ao creme obtido e atender à demanda do mercado por manteiga, as fábricas adquiriam cada vez mais batedeiras maiores.
Apesar de serem equipamentos grandes, a automação ainda não existia e, portanto, as grandes batedeiras mecânicas rotacionais exigiam muita força muscular para serem movimentadas. Desta forma, o trabalho nas fábricas de laticínios tornou-se predominantemente masculino.
A partir de então, algumas mulheres mantiveram o hábito de fazer manteiga para o consumo próprio em família, porém a atividade deixou de ser algo em que elas estivessem socialmente engajadas e passou a ser uma atividade solitária.
O aspecto social do trabalho aos poucos também foi transferido aos homens (nesse caso, seus maridos), que eram responsáveis por vender o leite para o laticínios e trazer de volta o leite desnatado e o leitelho para alimentar os animais. Como resultado, as mulheres pararam de ganhar o dinheiro vindo da venda da manteiga e, com isso, perderam o reconhecimento pelo seu trabalho.
Não há dúvidas do papel fundamental da Ciência do Leite para a evolução da área, mas uma consequência acabou sendo erradicar o papel e a autoridade da mulher no mundo do leite naquele momento.
Como está o papel das mulheres na Ciência do Leite?
Atualmente, nas diferentes partes do mundo, as mulheres vêm exercendo diversas funções no setor de laticínios, desde a obtenção, produção, pesquisa e desenvolvimento e ciência.
Na Índia, por exemplo, as mulheres desempenham um papel fundamental nas propriedades leiteiras. O conhecimento tradicional possuído por elas muitas vezes garante o sustento das famílias. Entretanto, apesar do intenso envolvimento, o acesso ao conhecimento ainda é limitado, o que restringe a adoção de práticas e tecnologias que possam aumentar a produção e, consequentemente a renda das famílias.
A capacitação das mulheres é uma estratégia importante a ser seguida, já que o conhecimento pode impulsionar a adoção de novas práticas para melhorar o sustento das famílias. Um projeto de empoderamento feminino, envolvendo o treinamento de mulheres que lidam com atividades de laticínios (como seleção de raças, composição da alimentação utilizando alimentos disponíveis no local, cuidados com a própria saúde e serviços bancários) mostrou que a capacitação melhorou o conhecimento e a adoção das práticas por elas, as quais passaram a ter mais sucesso socioeconômico na sua região.
Em relação à Ciência do Leite, o cenário mostra-se bem democrático entre homens e mulheres em várias partes do mundo. Na década de 1980, apenas 25% dos pós-graduados em Ciência do Leite na Universidade de Purdue eram mulheres.
Em 2015, esta proporção já atingia 50%, com tendência de crescimento. Nos EUA, existe um constante interesse de mulheres por aprofundar o conhecimento nas áreas de Ciência de Alimentos, Engenharia de Alimentos, Nutrição, Medicina Veterinária, dentre outros.
Essa tendência não é diferente do que vemos atualmente no Brasil. Por exemplo, no curso de Ciência e Tecnologia de Laticínios da Universidade Federal de Viçosa, no ano de 2020, 58% dos matriculados são mulheres.
As mulheres tiveram um papel fundamental para o mercado de manteiga no início de sua criação. Hoje, têm uma importância essencial nos mais diversos setores da área de lácteos. Elas estão trazendo a sua visão para as diferentes situações e conflitos e o mercado e academia estão as acolhendo!
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Fonte:Milk Point
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